O Homem no centro da cidade
Nelson Luís: Mestre em Engenharia Civil pela École Nationale des Ponts et Chaussées e FEUP, Especialista em Project Finance em projetos de Infraestrutura, Future Energy Leaders Portugal/Associação Portuguesa de Energia20/12/2023
Estamos a viver uma revolução que está a mudar rapidamente a forma como vemos e vivemos as nossas cidades, com vista a torná-las mais inteligentes, mais resilientes e socialmente justas para a sociedade atual, sem comprometer as gerações vindouras.
A Quarta Revolução industrial já está em curso. Klaus Schwab, fundador do Fórum Económico Mundial, afirmava que “[a] Quarta Revolução Industrial caracteriza-se por uma série de novas tecnologias que fundem os mundos físico, digital e biológico, impactando todas as disciplinas, economias e indústrias, e até desafiando ideias sobre o que significa ser humano”. Esta revolução, tal como as que a antecederam, está a mudar rapidamente a forma como vemos e vivemos as nossas cidades, com vista a torná-las mais inteligentes, mais resilientes e socialmente justas para a sociedade atual, sem comprometer as gerações vindouras.
Neste artigo, abordamos seis pilares fundamentais nas Cidades Inteligentes:
1) Energia limpa e barata para todos e flexibilização dos consumos
Segundo a ONU, cerca de 68% da população mundial viverá em cidades em 2050. É aí que ocorrerá uma grande parte do nosso consumo energético e, portanto, faz sentido investir na microprodução descentralizada de energia no centro das nossas cidades.
Tal como o nosso consumo, as energias renováveis são previsíveis mas variáveis. Assim, com sistemas inteligentes de partilha de produção à escala de uma cidade conseguimos reduzir substancialmente o custo da nossa fatura de eletricidade. Como? Recorrendo à produção centralizada despachável como parâmetro de ajuste apenas quando o consumo local excede a produção local.
2) Mobilidade e planeamento urbano inteligente (a cidade dos 15 minutos)
Atualmente, vivemos um conflito geracional entre uma geração que não percebe como é possível viver de forma diferente e outra geração que tem consciência que não é possível continuar a viver da mesma forma.
É fundamental criar um plano de investimento em infraestrutura para o transporte individual de baixo peso (ciclovias) e, simultaneamente, apostar no transporte público (tramway/autocarro/metro/comboio). É incompatível com um sistema urbano de planeamento inteligente que se continue a apostar num modelo de desenvolvimento social onde o transporte individual pesado assume o monopólio das nossas cidades, tirando espaço aos meios de transporte mais amigos do ser humano, da economia e do meio ambiente.
Pintar asfalto de verde, vermelho ou de qualquer outra cor, não é desenvolver uma ciclovia, nem tornar a cidade mais eficiente ou mais sustentável. Não há peões numa autoestrada, assim como não pode haver carros numa ciclovia. Tal como se reconhece a necessidade de passeios para a circulação de peões, também a mobilidade ligeira carece de infraestruturas que lhe sejam exclusivamente dedicadas.
Portugal, como o maior produtor de transporte individual leve (bicicleta) da Europa, está numa posição muito favorável para fomentar o desenvolvimento desta forma de transporte. O que falta? Temos agora de desenvolver a infraestrutura necessária.
3) Digitalização dos serviços, sejam estes públicos ou privados (educação, serviços administrativos, saúde, etc.)
A digitalização dos serviços (públicos & privados) é fundamental para a democratização do acesso, de uma forma eficiente e competitiva, por parte dos cidadãos. É, por isso, um vetor indispensável nas smart cities.
Os exemplos que têm surgido nos diferentes setores são numerosos e os resultados têm dado provas das suas mais-valias: (i) nos serviços administrativos, a informatização e digitalização dos serviços públicos, bem como a dinamização de mecanismos de atendimento à distância, (ii) no caso da saúde, a telemedicina e o recurso à inteligência artificial; (iii) no caso da educação, a difusão dos MOOC (Massive Open Online Courses) e, bem assim, dos manuais digitais.
A introdução da inteligência artificial está a revolucionar a produtividade em diversos setores, tornando-se um elemento essencial para melhorar o serviço prestado à população.
4) Gestão de Resíduos & Economia Circular
Reduzir, reutilizar e reciclar: são estes os três pontos-chave. E têm uma ordem.
O pensamento do ciclo do produto à escala da cidade é fundamental. Por isso, para construirmos cidades mais inteligentes, temos, e primeiro lugar, de reduzir o volume de resíduos produzidos.
Um estudo da International Solid Waste Association (ISWA), uma organização sem fins lucrativos, que reúne profissionais do setor de resíduos sólidos, prevê que a produção global de lixo, que está em constante aumento, atingirá os 3.4 mil milhões de toneladas por ano, até 2050. As cidades são onde está concentrada a maioria da população. Nessa medida, o papel das cidades é essencial para inverter esta tendência crescente.
O efeito “saco do lixo” é um exemplo perfeito de como políticas públicas podem incentivar a reutilização. O facto de as pessoas sentirem no bolso o impacto de não reutilizarem, faz com que adotem hábitos mais sustentáveis em prol do ambiente. A reciclagem é a última incógnita da equação que nos permite melhor gerir os resíduos das cidades, fomentando a economia circular. Desta forma, pensar no ciclo de vida dos produtos permite-nos tornar as nossas cidades mais eficientes.
A água é, reconhecidamente, um bem escasso e precioso, ao qual não tem sido dado a devida importância.
Como se sabe, 70% da superfície do planeta está coberta por mares e oceanos. Contudo, menos de 3% dessa água é doce e menos de 1% do total de água no planeta está disponível para consumo humano. Nessa medida, é essencial uma boa e adequada gestão deste recurso. Três aspetos essenciais para esse efeito:
Em primeiro lugar, é essencial que existam infraestruturas adequadas e sem fugas, que garantam que tudo o que entra no sistema chegue ao seu devido ponto de destino.
Em segundo lugar, o uso de água potável deve ser limitado ao essencial. Atualmente, usamos muito frequentemente água potável para a limpeza da via pública, na limpeza de veículos ou para abastecer as instalações sanitárias. Uma maior eficiência na gestão da água exige que se adeque o tipo de recurso ao fim visado.
Por último, é reconhecido que o impacto das alterações climáticas se reflete, entre outros aspetos, no aumento de fenómenos meteorológicos extremos. Assim, cada vez mais, passamos, repentinamente, de períodos caraterizados por seca para períodos de acentuada precipitação. As smart cities têm de estar preparadas para dar resposta a esta situação, assegurando a existência de robustos sistemas de drenagem, áreas de retenção e de infiltração, e a adequada configuração das vias públicas e da edificação, permitindo o escoamento de águas.
Com a globalização, vários países europeus passaram a assentar a sua estratégia alimentar na importação de produtos do outro lado do mundo. Este modelo não só não é sustentável como não permite assegurar a estabilidade de preços e do abastecimento.
As Hortas Urbanas têm surgido em algumas cidades europeias como um instrumento de redução da importação alimentar (e em Portugal tiveram no Prof. Gonçalo Ribeiro Telles um notável promotor). Algumas das suas vantagens:
(i) Incentivam o comércio alimentar de proximidade, evitando todas as externalidades negativas ligados ao transporte;
(ii) São espaços verdes, que contribuem para a captação de dióxido de carbono;
(iii) Permitem a criação de novos empregos;
(iv) Desempenham um papel educacional no setor primário, transversal às diferentes faixas etárias; e
(v) Incentivam o contacto com a natureza, consubstanciando uma experiência social cada vez mais procurada nos meios urbanos.
A peça essencial das smart cities é o ser humano; portanto, este tem de ser o polo central. As cidades devem ser feitas para a vida e mobilidade das pessoas, não para os carros.
Por outro lado, a construção das cidades não pode ser feita de olhos vendados, que responda apenas às necessidades, de curto prazo, de alguns, em detrimento do bem-estar de todos e, em especial, das gerações futuras, que vão herdar as smart cities do presente.
A construção das smart cities exige a implementação de smart policies!