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O sector dos edifícios e a certificação energética: a possibilidade e a necessidade de mudança - parte 2

Manuel Collares Pereira - Membro da ACL, Membro da Academia da Engenharia, Professor Catedrático e Investigador Coordenador aposentado, Consultor Científico da Vanguard Properties*09/10/2024
Análise do actual Regulamento para Certificação Energética de Edifícios (REH) e sugestões de melhoria. - Continuação do número anterior.
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2.4: Alguns outros aspectos a nível de conceito

2.4.1 NZEBs e outras abordagens

A tecnologia solar fotovoltaica também evoluiu enormemente, potenciando a adopção de soluções NZEB muito mais facilmente (e economicamente) do que há 20 anos.

Como se referiu a progressiva electrificação da economia é a forma mais rápida e poderosa de fazer subir a contribuição das energias renováveis. Estas (solar, eólica, hídrica) são já a forma, de longe, mais barata de produzir electricidade. Em particular a solar fotovoltaica que pode, e deve, ser aproveitada na produção centralizada e descentralizada de energia eléctrica no futuro. Está muito bem-adaptada a ser colocada nos edifícios.

Fala-se hoje no conceito de NZEB- Net Zero Energy Building3, onde a ideia é a de juntar ao edifício uma produção activa própria de energia (sobretudo a solar fotovoltaica, mas também a térmica) como forma de produzir em termos anuais, em média, tanto quanto o edifício consome (como, por exemplo, determinado em termos de energia final, no REH).

Mas a forma actual do REH, com esta enfase numa abordagem relativa com a energia contabilizada em termos de energia primária, não é directamente, ou facilmente, relevante para a obtenção de um NZEB, em cada caso. Note-se até que ter um NZEB pode ser conseguido com base numa certificação energética melhor ou pior!

Isto é, se se projecta um NZEB, poderiam até transgredir-se alguns limites parciais hoje impostos pelo REH, já que, no final, o balanço será nulo.

A proposta feita em 2.2 acima (ver a primeira parte do artigo “O sector dos edifícios e a certificação energética: a possibilidade e a necessidade de mudança”, publicado na edição de julho), vai no sentido de facilitar uma abordagem que proceda logo ao calculo da Energia Final em cada edifício com as melhores tecnologias de hoje e de reportar o mesmo para fins de certificação, valorizando a análise do balanço final nulo (ou quase nulo, ou até um pouco positivo- NZEB+, etc.) que se pode lograr hoje e que passará a fazer parte da classificação exigida no futuro próximo, em termos europeus.

Este comentário sobre os NZEB, com o recurso à energia solar no próprio edifício, torna os comentários feitos sobre a energia primária ainda mais prementes. Na realidade temos produção quântica de energia final para um consumo final. O transito para primária (e toda a termodinâmica associada) não faz qualquer sentido.

O caminho na direcção dos NZEB com o fotovoltaico, potencia de forma clara, para lá do autoconsumo, a abordagem das Comunidades Energéticas, cujo desenvolvimento (em Portugal e na Europa) é talvez um dos passos mais importantes que pode ser dado em termos de política energética para o futuro. E algo susceptível de ser valorizado no próprio regulamento.

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2.4.2-Os novos materiais e as emissões

A evolução tecnológica que ocorreu, entretanto, aporta à questão da construção e dos edifícios uma relevância enorme para a questão das alterações climáticas, permitindo que este sector, para lá das emissões que causa, possa ser uma parte importante da solução, possibilitando o sequestro e o armazenamento do CO2 emitido, qualquer que seja a sua origem.

Esta é uma referência directa à questão da neutralidade carbónica.

Explicando um pouco:

Há emissões de CO2 associadas ao sector, na construção e no funcionamento dos edifícios 6 -Global Status Report, 2018, EIA. A nível mundial, 40% da totalidade das emissões de CO2 estão associadas ao sector, repartidas entre ~29% para o funcionamento e 11% para a construção.

A construção comum baseada em cimento tem uma forte pegada positiva (o sector da produção de cimento é responsável por entre 7 e 8% das emissões totais de CO2 a nível mundial) 7 [Wikipedia- Environmental impact of concrete]

Contudo, a evolução tecnológica, permite actualmente considerar a utilização de matérias primas como a madeira (com a qual hoje se podem fazer de forma integral, edifícios até com mais de 20 andares) e a madeira é um material de pegada carbónica negativa, não só porque é um sequestrador de CO2 que fica armazenado no edifício, mas também porque se presta a técnicas de pré-fabricação na construção, com notáveis reduções de tempo, impactes ambientais e de energia para o seu funcionamento.

Em Portugal estão a ser dados passos importantes nesta direcção, nomeadamente através do fabrico de CLT - Cross Laminated Timber, Glulam - lamelados colados e componentes do tipo Woodframe, com base em floresta nacional (ver, por exemplo, 9).

A incorporação de materiais orgânicos não se reduz às novas componentes em madeira (mass timber). Destacamos, por exemplo, outros como a cortiça a nível dos isolamentos, igualmente assinalável pela possibilidade de ter uma origem nacional e ainda a possibilidade de associar aos edifícios um “coberto vegetal”, com fins térmicos, mas também estéticos e até produtivos.

Fala-se hoje em edifícios “carbono neutros”, o que quer dizer que têm de incorporar quantidades substanciais de madeira (por exemplo) para poderem atingir a pegada zero. Não confundir com edifícios “zero emissões”, o que basicamente significa que a energia que consomem é de origem solar (NZEB) e/ou tem origem totalmente em fontes não fósseis.

Esta evolução, contudo, não é bem potenciada pelo Regulamento REH, como se explica no ponto seguinte.

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2.4.3 - A Inercia térmica: um defeito do regulamento?

O Regulamento REH considera três níveis de inercia térmica nos edifícios, em função dos quais define o seu comportamento energético.

Quando o Regulamento foi concebido há mais de 25 anos, a preocupação com a inercia térmica fazia todo o sentido, sobretudo tendo em conta o comportamento dos edifícios no Verão e a possibilidade de os manter relativamente frescos, mesmo sem a intervenção de qualquer equipamento para forçar o seu arrefecimento activo. Correcto!

Os edifícios em construção convencional em alvenaria e betão, alcançam facilmente valores de inercia térmica elevados, algo que é favorecido pelo Regulamento.

Contudo a evolução para outros materiais, como a madeira acima referida, produz edifícios com uma massa muito inferior e, portanto, edifícios que, de seu natural, podem cair na categoria da inercia fraca.

Contudo têm um comportamento térmico em geral muito bom, até bem superior, mesmo na actual formulação do Regulamento. Mas só até um certo ponto, como queremos sublinhar.

Isto porque é fácil um edifico em madeira possuir um Nvc que exceda o correspondente Nv, algo que o Regulamento não permite. Contudo poderá ter um Nic bastante mais baixo que o correspondente Ni e, no cálculo total, para o seu Ntc, aparecer com um valor final bom. Este, aliás, é que deveria ser o resultado premiado pelo Regulamento.

Tanto mais que as definições que estabelece (para os seus casos limites) não tiveram em conta algo que está para lá da massa térmica, uma abordagem mais fina que considere a baixíssima condutibilidade térmica da madeira (por comparação com a dos materiais convencionais) e a espessura desta responsável pelo tempo de propagação das ondas térmicas. Por outro lado, menos inercia térmica permite aos edifícios ter uma resposta muito mais rápida aos sistemas de aquecimento e produção de frio (bombas de calor) que hoje se propõem.

Esta evolução da tecnologia e dos rendimentos dos cidadãos permite encarar esta questão de outra forma. Os equipamentos de rendimentos elevadíssimos (bombas de calor, recuperadores, etc.) e as renováveis de baixo custo, conduzem a que aquecer e arrefecer de forma activa sejam opções que estarão cada vez mais ao alcance da bolsa de todos e que são prejudicadas pela necessidade de aquecer (ou arrefecer) de cada vez, grandes massas associadas à inercia térmica, quando o que se pretende é apenas obter as condições de conforto do ar ambiente… Ora, mais energia corresponde a mais emissões, o quer se quer evitar…!

Acresce que a combinação com a energia solar ajuda a resolver também este problema de forma clara. O sistema solar fornece, números redondos, aproximadamente o dobro da energia no Verão do que no Inverno, permitindo colocar os equipamentos de produção de frio e ventilação a funcionar e resolver o eventual problema de sobre-aquecimento. Até sem recurso a energia da rede, porque há tanto mais calor quanto mais sol estiver a brilhar! Isto são subtilezas muito importantes a que o Regulamento não atende.

Está na hora de corrigir estas limitações, considerando uma menor penalização da inercia fraca (quando isso se justificar) e através da eliminação dos limites parciais, definindo-os sobretudo em função do parâmetro Ntc, sem preocupação com o valor das parcelas que intervêm na correspondente soma.

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3. Conclusão

Em conclusão: o REH é, por definição, um “work in progress”. Com esta nota pretendemos chamar a atenção para alguns aspectos que entendemos serem relevantes na sua evolução, clarificando o tema para construtores e promotores e tornando a sua aplicação, para lá da disciplina que introduz na sustentabilidade do sector, numa ferramenta mais útil para todos os actores que nele intervêm. Incluindo a facilitação do cumprimento do próprio programa ELPRE (ADENE) 8 que encara a evolução do sector por forma a fazer face às grandes exigências do PNEC e do RTC, primeiro até 2030 e, depois, até 2050.

As alterações climáticas, as actuais pressões de índole diversa sobre o sector e a sua necessidade de crescimento (habitação nova e reabilitação) dão um caracter de urgência à mudança que se sugere. Assim espera-se que os organismos responsáveis (por exemplo a ADENE, a DGEG) iniciem de imediato o evidente esforço de revisão e possam abordar a questão de forma faseada, como se sugere, para um resultado mais rápido e útil a curto prazo.

Uma reflexão sobre a questão da energia primária

A1. Energia Primária versus Energia Final

Procurou mostrar-se que a abordagem do Regulamento centrada sobre a Energia Primária, acaba por conduzir a uma classificação energética dos edifícios que é ambígua e afastada da realidade do seu real comportamento energético.

Porquê, então, continuar a dar à Energia Primária o relevo que tradicionalmente sempre se deu?

É uma tradição muito antiga e vem do facto de a maior parte da energia que se consome, há muito que vem dos combustíveis fósseis, questão-chave, mesmo determinante, da Economia mundial e da Geopolítica que a causa e define. Por outro lado, a sua queima é responsável pela emissão de CO2 (e outros GEE- Gases de efeito de Estufa, como o gás Natural, os óxidos de Azoto, etc.) e já há muito que se sabe que tem de haver controlo sobre estas emissões.

Os combustíveis fósseis são um recurso, finito, explorados, transformados, transportados, até poderem ser convertidos em Energia Final e esta em Energia Útil. Esta faceta de recurso levou a que fossem classificados como fontes de Energia Primária. Hoje constituem ainda 85% (à escala mundial) 4 do total da energia primária utilizada (em Portugal, apenas ~70%).

Se não existisse esta dependência dos combustíveis fósseis, provavelmente não se daria tanta importância ao conceito de Energia Primária e falar-se-ia apenas na produção de Energia Final, aquela que tem de estar disponível, antes do consumo (transformação em energia útil, por exemplo, electricidade, que está disponível nas tomadas das casas, antes de ser usada na iluminação das mesmas).

Neste momento fazemos uma transição energética para as Renováveis, cuja etapa primária, como a da sua origem na -inesgotável - energia solar, não tem qualquer relevância. Mas este discurso de energia primária persiste, por hábito e também porque os produtores de combustíveis fósseis não querem perder a sua hegemonia e, aliás, com frequência, vêm insinuar-nos que o seu peso é tão grande (85%!) que pretendida transição energética é pouco mais que uma fantasia.

Na realidade, há a relevância de as emissões de CO2 estarem directamente ligadas à sua queima e, portanto, se se quer reduzir aquelas, tem de se reduzir a Energia Primária: carvão, petróleo, gás. E há uma contabilidade a fazer.

Mas, em termos da Energia Final e Útil, não!

Basta compreender que o que interessa é a produção de Energia Final, mesmo antes da última transformação em energia útil e que esta produção pode vir directamente de fontes Renováveis.

Há anos que a União Europeia se preocupa com as emissões associadas aos combustíveis fósseis, nomeadamente na sua utilização na produção de electricidade (energia final, desprezando as perdas em rede, a partir de centrais térmicas) e daí todos os regulamentos conterem constantes definidas para contabilizar a eventual redução de combustíveis/emissões associadas à energia final que uma melhor construção dos edifícios, por exemplo, era capaz de estar a proporcionar. O nosso regulamento converte tudo em Energia Primária para ter isto em conta. Ora acontece que a energia eléctrica, forma de energia que mais depressa vai potenciar a transição para as energias renováveis, é cada vez mais produzida com estas últimas (em Portugal >72%) pelo que esta conversão para ter em conta a Energia Primária, faz cada vez menos sentido!

Acresce que a electricidade (Final) hoje satisfaz cerca de 23% das necessidades de Energia Final totais, mas, o objectivo em 2050, é atingir uma percentagem da ordem de ~50%, através do aumento da contribuição desta Energia Final, no sector dos transportes e no da produção de calor (e frio) nos sectores da indústria e nos edifícios. Isto é, quanto maior for a fracção desta electricidade que tiver uma origem renovável, mais impacte se terá sobre a redução da Energia Primária fóssil.

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A2. A conversão da Energia Primária em Energia Final: os limites impostos pela Termodinâmica

Em termos físicos, os combustíveis fósseis têm de ser extraídos, transportados, transformados e finalmente, o seu conteúdo energético transformado em Energia Final. Os rendimentos de conversão nos processos de transformação (impostos pela termodinâmica) são muito baixos. Basta ver o que se passa num motor de combustão de um automóvel, que tem um rendimento aproximadamente de 20%!

Quando um veículo eléctrico, que tem um rendimento do seu motor de 95% e recorre a electricidade renovável, substitui um veículo a combustão, dá-se uma machadada de um factor superior a 5 na energia primária para o mesmo consumo.

Conclusão semelhante pode-se obter quando se pensa na produção de electricidade numa central térmica a carvão ou a fuel, com rendimentos entre 30 e 40%. Ao substituir essa central térmica por uma renovável, a machada é pelo menos da ordem de um factor 2,5. Foi, aliás, o que aconteceu com o encerramento das centrais a carvão do Pego e Sines, reduzindo, em muito, a nossa dependência fóssil primária.

O rendimento para produção de electricidade, final e renovável pode ser mais baixo (~20% no caso da energia solar fotovoltaica) mas isso não é relevante já que o recurso é infinito. O que importa é o custo com que isso se faz e hoje o fotovoltaico já é a forma mais barata de produzir electricidade, até na cobertura da casa de cada um.

Até há pouco tempo, a energia fóssil (primária) era mais barata e isso também justifica a sua enorme hegemonia e a relutância com que teimamos em não reduzir a sua importância nos nossos regulamentos. Mas hoje já não é assim, sendo tendencialmente cada vez mais caras, mesmo sem incluir os custos manifestamente elevados, os das externalidades, associados ao impacte climático que geram.

Assim, a contabilidade da hegemonia da energia primária num futuro cada vez mais renovável, vai parecer cada vez menos assustadora, até acabar por se tornar numa preocupação irrelevante. Tem é que ir desaparecendo também, nomeadamente dos Regulamentos da Certificação Energética.

3- SCE- Estatísticas do Sistema de Certificação Energética dos Edifícios

6 - Global Status Report, 2018, IEA

7 - Wikipedia- Environmental impact of concrete

8 - Programa ELPRE (ADENE)

9 - www.kozowood.com (Esposende)

* O autor escreve no antigo acordo ortográfico.

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