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Europa - crescer outra vez

Nuno José Ribeiro, Advogado e Pós-graduado em Direito de Energia*05/12/2024

As circunstâncias actuais fazem com que a Europa tenha de, simultaneamente, cortar a dependência energética face à Rússia e a militar face aos EUA.

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“Há algo de senil em mim

Que já não me deixa lembrar

Há quanto tempo foi o fim

não sei cheguei a começar

 

Mas sei que foi sempre assim

Mais olhos que barriga

Mais sono que fadiga

Há sempre tempo para parar

Saber se vale a pena

Ou ficou por fazer

 

Refrão:

 

É só contar até 3 (1...2...3)

Vou nascer outra vez

Fechar os olhos (1...2...3)

Vou nascer outra vez

Respirar bem fundo (1...2...3)

Vou nascer outra vez

Começar de novo (1...2...3)

Vou nascer outra vez

 

Nunca foi boa escolha

Ficar à espera para ver

Por mais que a gente sofra

Um dia havemos de morrer

 

Mas sei que foi sempre assim

Mais garganta que vontade

Mais treta que verdade

Há sempre tempo para pensar

Mudar alguma coisa

Ou me parto a loiça”

Começo este artigo recuperando uma canção dos Ritual Tejo de 1996 cuja letra me pareceu apropriada a este momento de final de ano e de ciclo, propício a balanços.

Porque motivo a Europa tem que crescer? Nos últimos 70 anos a Europa habituou-se a depender militarmente dos EUA e nos últimos 30 anos do fornecimento de energia da Rússia, o que levou à actual situação de dependência funcional de ambos por parte do Velho Continente.

No Verão de 2022, a Euronews noticiava o seguinte, a propósito de um plano para a redução da dependência energética:

“A Comissão Europeia apresentou um plano de ação, o REPowerEU, para tentar atingir este objectivo até 2027. Desde o início da guerra na Ucrânia, a União Europeia tem tentado urgentemente eliminar, de forma gradual, a utilização de combustíveis fósseis russos. A Comissão Europeia apresentou um plano de acção denominado REPowerEU para acabar com a dependência até 2027.

O plano REPowerEU consiste em adaptar rapidamente a indústria e as infra-estruturas a diferentes fontes e fornecedores de energia. Isto inclui a ampliação e aceleração das energias renováveis para substituir os combustíveis fósseis nas casas, na indústria e na produção de energia. A Comissão Europeia estima que irá custar 210 mil milhões de euros.

No centro do plano REPowerEU está o Mecanismo de Recuperação e Resiliência, que providenciará financiamento adicional da União Europeia. Os países da UE poderão fazer investimentos para as prioridades da REPowerEU, como parte dos seus Planos de Recuperação e Resiliência (RRP), conhecidos entre nós como a “Bazuka Europeia”.

Outras fontes de financiamento para a diversificação e transição energética incluem os fundos da política de coesão e o Mecanismo Interligar a Europa. No entanto, a maior parte dos investimentos terá de ser mobilizada através de fontes privadas.

O InvestEU é o programa de investimento emblemático da UE. Trabalha em parceria com o Banco Europeu de Investimento, tem uma garantia de 26 mil milhões de euros da UE, o que tranquiliza os investidores e espera-se que traga mais de 370 mil milhões de euros em financiamento público e também privado.

Quando o InvestEU foi aprovado destinava-se principalmente à recuperação económica pós- pandemia, concentrando-se nas transições verdes e digitais. Agora, poderá ser utilizado para ajudar nos esforços europeus para acabar com a dependência do gás e petróleo russos.

Os seus investimentos focam-se em quatro áreas: investimento sustentável, inovação, inclusão social e criação de emprego. Pelo menos 30% dos investimentos deverão contribuir para tornar a Europa neutra em termos carbónicos.

O programa InvestEU centraliza programas de consultoria ao nível da UE e pode ajudar a prestar um apoio eficiente numa vasta gama de objectivos políticos. Até julho de 2022, espera-se que o InvestEU tenha cerca de 50 projectos de investimento em funcionamento.”

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A resposta institucional da UE pode ser consultada aqui1: e baseia-se nos vectores:

Preços da energia e segurança do aprovisionamento

Na Declaração de Versalhes, assinada em Março de 2022, os dirigentes dos 27 Estados-Membros da UE decidiram eliminar progressivamente, assim que possível, a dependência da UE em relação aos combustíveis fósseis russos.

No Conselho Europeu, 24-25 de Março de 2022

Em 30 e 31 de Maio de 2022, o Conselho Europeu chegou a acordo sobre a proibição de quase 90% de todas as importações de petróleo da Rússia até ao final de 2022 – com uma excepção temporária para o petróleo bruto fornecido via oleoduto.

Tendo em conta as diferentes matrizes energéticas, condições e circunstâncias dos Estados-Membros, os dirigentes da UE apelaram à:

• Maior diversificação das fontes e rotas de aprovisionamento energético,

• Aceleração da implantação das energias renováveis,

• Continuação da melhoria da eficiência energética,

• Melhoria da interligação das redes de gás e eletricidade

O Conselho Europeu decidiu que o sexto pacote de sanções contra a Rússia abrangerá o petróleo bruto, bem como os produtos petrolíferos, fornecidos pela Rússia aos Estados-Membros. Será prevista uma excepção temporária para o petróleo bruto fornecido via oleoduto. Em caso de interrupção súbita do fornecimento, serão tomadas medidas de emergência para garantir a segurança do aprovisionamento.

Já na Reunião extraordinária do Conselho Europeu, 30-31 Maio 2022 o Conselho Europeu adoptou conclusões sobre a Ucrânia e sobre a segurança alimentar, a segurança e defesa e a energia.

Na mesma ocasião, os dirigentes instaram o Conselho da União Europeia a finalizar e a adoptar sem demora as novas sanções, assegurando:

• O bom funcionamento do mercado único da UE

• A concorrência leal

• A solidariedade entre os Estados-Membros

• Condições de concorrência equitativas para eliminar progressivamente a dependência da UE em relação aos combustíveis fósseis da Rússia.

Recorde-se que na sequência da invasão da Crimeia, há 10 anos, a UE adoptou o Regulamento (UE) n. ° 269/2014 do Conselho, de 17 de Março de 2014, que impõe medidas restritivas no que diz respeito a acções que comprometam ou ameacem a integridade territorial, a soberania e a independência da Ucrânia e cuja vigência foi prorrogada até 15 de Março de 2025.

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Este acto normativo é complementado pelo Regulamento (UE) n. ° 269/2014 do Conselho, de 17 de Março de 2014, que impõe medidas restritivas no que diz respeito a acções que comprometam ou ameacem a integridade territorial, a soberania e a independência da Ucrânia e Decisão 2014/145/PESC do Conselho, de 17 de Março de 2014, que impõe medidas restritivas no que diz respeito a acções que comprometam ou ameacem a integridade territorial, a soberania e a independência da Ucrânia e concretamente nos seguintes campos:

  • Segurança alimentar
  • Corredores solidários

A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia está a ter um impacto directo na segurança alimentar e na comportabilidade dos preços dos alimentos a nível mundial.

O Conselho Europeu exortou a Rússia a:

• Pôr termo aos seus ataques a infraestruturas de transporte na Ucrânia

• Levantar o bloqueio dos portos ucranianos do mar Negro

• Permitir as exportações de alimentos, em especial a partir de Odessa

• Mobilidade de pessoas e mercadorias

O efeito destas actuações foi o seguinte:

“Os esforços conjuntos compensaram. Após meses de subida em flecha dos preços, o preço do gás na UE diminuiu substancialmente nos finais de 2022 e manteve-se relativamente estável em 2023. Em dezembro de 2023, um megawatt/hora (MWh) de gás custava 34 euros – quase nove vezes menos do que no pico da crise, quando o preço de um MWh ultrapassou os 300 euros.

Além disso, as medidas da UE traduziram-se nos seguintes resultados:

Redução da dependência em relação à Rússia: a UE diversificou rapidamente as importações de energia para não ficar dependente da Rússia. A percentagem global de gás russo (gás natural liquefeito GNL e gás natural conduzido) nas importações de gás da UE diminuiu de 45% nos anos anteriores à crise para 18% em Agosto de 2024

Redução da procura de energia: os países da UE cooperaram no sentido de reduzir a procura de energia. O consumo de gás diminuiu 18% entre Agosto de 2022 e Maio de 2024, em comparação com os cinco anos anteriores

Segurança do aprovisionamento: o nível de enchimento das instalações de armazenamento de gás situava-se em mais de 99% em Outubro de 2023 e em mais de 90% em Outubro de 2024, o que assegurou uma abundância de reservas antes de cada estação fria

Promoção das energias renováveis: a UE acelerou a implantação das energias renováveis. O ano de 2023 assinalou um novo recorde para a energia solar, com 56 gigawatts de nova capacidade fotovoltaica instalada, ou seja, mais 60% do que em 2021 (26 GW). Em Maio de 2022, pela primeira vez, foi produzida mais eletricidade na UE a partir de energia eólica e solar do que a partir de combustíveis fósseis.”

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A relevância da dependência energética da Europa face à Rússia decorre do facto de que “a UE é um importador líquido de energia. Em 2020, 58% da energia disponível na UE tinha sido produzida fora dos Estados-Membros da UE.

Em 2020, a taxa de dependência da UE no seu conjunto face à Rússia foi de 57,5%. A situação variou consideravelmente entre os Estados-Membros: a Estónia registou uma taxa de dependência de 10,5%, a Alemanha de 63,7%, a Grécia de 81,4% e Malta de mais de 97%.”2

Lamentavelmente, “a dependência energética da Europa em relação à Rússia mantém-se, mais de dois anos após a invasão da Ucrânia, com diferenças regionais no acesso à energia e nas medidas", concluíram a Fundação Francisco Manuel dos Santos e a Brookings.

Esta é a conclusão do estudo “O atribulado divórcio do gás russo na Europa”, da autoria de Samantha Gross, especialista em política externa, energia e política climática, e de Constanze Stelzenmüller, directora do Centro de Estudos da Europa e dos EUA da Brookings Institution, resultado de uma parceria entre a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e aquela instituição norte-americana, com a colaboração da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD).

Para as autoras, “a Europa continua, por enquanto, largamente dependente do gás importado, tendo-se limitado a diversificar os seus fornecedores e a aumentar a sua dependência relativa do GNL [gás natural liquefeito], que é mais caro”.

O estudo refere que a resposta da Europa, após a invasão russa da Ucrânia, em Fevereiro de 2022, foi rápida “e inimaginável antes do conflito”, mas esconde diferenças regionais no acesso à energia e nas medidas tomadas, que dificultarão uma resposta política unificada no futuro.

Adicionalmente, as autoras apontam que a redução da procura e substituição por GNL tem representado graves prejuízos para as indústrias de uso intensivo de energia, subsídios controversos, políticas protecionistas e o aumento de tensões políticas entre países europeus.

“Esta é, por isso, uma trajectória incompleta e exposta a riscos futuros, tais como a contínua chantagem contra os países europeus que continuam a importar gás russo, o fim do acordo de circulação de gás ucraniano, uma eventual vitória de Trump nas presidenciais dos Estados Unidos, em Novembro, ou a elevada volatilidade que é típica do mercado de GNL”, aponta a análise.

Antes da guerra na Ucrânia, mais de 40% do gás natural importado pela Europa vinha da Rússia, o seu maior fornecedor individual, sendo que alguns países europeus dependiam da Rússia para mais de 80% do seu aprovisionamento de gás, com a Alemanha como maior cliente de gás russo em termos de volume, importando quase o dobro do volume de Itália, o segundo maior.

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Em 2023, a Europa ainda importava, globalmente, 14,8% do seu abastecimento total de gás da Rússia, com 8,7% a chegar através de gasodutos e 6,1% sob a forma de GNL.

O estudo alerta ainda para a necessidade de abordar questões políticas fundamentais, num futuro próximo: “quais devem ser os papéis dos mercados e dos governos na gestão da economia do gás e na distribuição de recursos escassos? Se a segurança do fornecimento de gás faz agora parte da postura da Europa face à segurança geral de um continente interdependente, aberto e globalizado, o que é que isso significa para o estatuto das infra-estruturas essenciais e das empresas energéticas? Que papel deverá a UE desempenhar na integração do mercado europeu do gás e na resolução das desigualdades de distribuição e das respostas de políticas fiscais protecionistas? E, finalmente, como é que tudo isto se insere na aliança transatlântica? A segurança energética deve fazer parte de uma estratégia de defesa europeia. Algumas medidas já foram tomadas, nomeadamente legislação para financiar a produção de munições através do orçamento da UE, bem como a criação de uma unidade de destacamento rápido, com cinco mil soldados de vários países, para missões de manutenção da paz no mundo.”

”Quando há uma guerra de agressão na Europa - contra a Ucrânia, - quando há uma guerra híbrida da Rússia contra os Estados-membros da UE, chegou o momento de diminuir o risco de uma agressão contra um de nós. Se não for agora, não sei quando é que a defesa europeia realmente começará a ser levada a sério", disse Nathalie Loiseau, eurodeputada liberal francesa que trabalha em políticas de defesa.

Na recente revisão do orçamento da UE até 2027, foram acrescentados 1,5 mil milhões de euros para o Fundo Europeu de Defesa, a fim de aumentar a produção industrial de armamento.3

A dependência militar da Europa face aos EUA é fácil de entender quando se tem presente que depois da II Guerra Mundial, as forças militares americanas tornaram-se presença habitual neste continente, desde Portugal até à Turquia e foram ficando com base na conivência e na conveniência da Europa.

O mesmo se diga das forças militares da então URSS, nos países da chamada Cortina de Ferro e tudo isto no contexto de um conflito global não assumido directamente como foi a Guerra Fria.

O continente estava devastado e exausto e, portanto, os recursos do lado ocidental que poderiam ser destinados a defesa foram canalizados para a reconstrução e o Estado Social.

Sem esquecer que o momento político desde o pós-guerra até aos anos 80 não era nada propício a actividades bélicas na Europa ou promovidas por esta.

Já no caso do bloco de Leste, tudo se passou de forma diferente, como sabemos.

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Aos EUA também convinha a situação porque a presença aqui ajudava a sua auto afirmação enquanto super potencia e mais ainda ao desenvolvimento da industria de defesa norte-americana.

Todos ganhavam, aparentemente e nós Europeus, fomo-nos demitindo colectivamente das nossas responsabilidades. Até que chegamos ao quadro de hoje.

A avaliar pelas primeiras informações, o novo mandato do Presidente Trump vai assentar em políticas protecionistas do mercado interno dos EUA. Vejam-se por exemplo a questão das sobre taxas sobre os bens importados para aquele país.

Na verdade, “Trump prometeu nesta campanha eleitoral impor tarifas entre 10 e 20% sobre todos os produtos importados e 60% para os provenientes da China.”4

Trump está a recuperar duzentos anos depois a chamada doutrina de Monroe anunciada pelo presidente americano James Monroe (presidente de 1817 a 1825) em sua mensagem ao Congresso em 2 de Dezembro de 1823.

“Julgamos propícia esta ocasião para afirmar, como um princípio que afecta os direitos e interesses dos Estados Unidos, que os continentes americanos, em virtude da condição livre e independente que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados, no futuro, como susceptíveis de colonização por nenhuma potência europeia […]” (Mensagem do Presidente James Monroe ao Congresso dos EUA, 1823)

A frase que resume a doutrina é: “América para os americanos”. O seu pensamento consistia em três pontos:

  1. A não criação de novas colónias nas Américas;
  2. A não intervenção nos assuntos internos dos países americanos;
  3. A não intervenção dos Estados Unidos em conflitos relacionados aos países europeus como guerras entre estes países e suas colónias.

Acontece que o mundo e a economia de hoje nada têm a ver com o que se passava na década de 20 do Século XIX. Basta lembrar, por exemplo que a China é o maior credor do mundo inteiro e que só a exposição dos EUA face à China ronda uns espantosos três mil biliões de USD, com a divida pública global dos Estados Unidos a ser, em 31 de Dezembro de 2023 “pela primeira vez 34 triliões de dólares. O que significam os 34 triliões de dólares? De acordo com cálculos, esse valor é mais de 120% do PIB dos EUA, e significa que cada americano tem uma dívida de pelo menos US$ 100.000.”5

A Europa e a China também já anteciparam que irão tomar medidas do género protecionista uma contra a outra e também contra os EUA.

Logo facilmente se percebe que o efeito final de tudo isto será uma gigantesca recessão mundial em 2025/2026 porque ninguém vai comprar e vender a ninguém.

Também não ajuda nada as crises políticas na Alemanha e na França e as orientações nacionalistas, tendencialmente pró-Putin, como por exemplo na Hungria.

A título de termo de referência, o PIB europeu é 17 biliões de Euros6 com o Jornal de Negócios a noticiar que o impacto das medidas de Trump sobre a Europa será de cerca de 0,5% do PIB europeu7. Citando um antigo primeiro ministro português, “é só fazer as contas”.

Como disse Churchill “todas as coisas mexem-se em simultâneo” e hoje é preciso cortar, ao mesmo tempo, a dependência energética face à Rússia e a militar face aos EUA.

Esta situação, que não tem nada de simples, acaba por ser paradoxalmente muito positiva, porque obriga a Europa a portar-se como uma entidade que chama a si as suas responsabilidades. Tal e qual como as pessoas crescidas.

Caso este objectivo seja concretizado, então a Europa estará “a crescer outra vez”, mas de forma mais sólida o que lhe dará um valor reforçado no concerto das Nações.

1,2,3 crescer outra vez.

* O autor escreve no antigo acordo ortográfico.

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